Sem muita divulgação e fora do conhecimento do grande público, o Rio abriga um verdadeiro circuito de festivais de cantigas de umbanda que reúne milhares de seguidores da religião de origem africana. Num momento em que se discute muito a intolerância religiosa, sem fazer alarde, em diferentes locais da capital, Baixada Fluminense, Niterói e São Gonçalo são realizados ao longo do ano pelo menos 13 concursos do gênero, todos com casa cheia. Os concorrentes que mais se destacam disputam o troféu Atabaque de Ouro, esse a nível nacional, que já é conhecido como o maior encontro de curimba do Brasil.
A premiação nacional é sempre para os que se destacaram no ano anterior e conta com representantes de seis estados. A próxima ocorrerá em 23 de setembro, quando serão entregue os troféus, considerados Oscars do seguimento, aos vencedores de 2017 em 12 categorias, incluindo melhor intérprete, melhor letra, coreografia e revelação, além do prêmio máximo, destinado ao campeão dos campeões. A festa, que em edições anteriores teve padrinhos ilustres como Elymar Santos e Neguinho da Beija-Flor, Dona Ivone Lara e Leci Brandão, acontecerá no Espaço Show Tradição, na Vila Valqueire, e deve atrair cerca de 3.500, segundo a previsão dos organizadores.
O movimento viveu o seu auge nos 1970 nas quadras das escolas de samba, terreiros e outros espaços menores. Na época, o ginásio do Maracanãzinho chegou a abrigar um grande festival do gênero, que também marcou presença na música popular brasileira, através de cantores como Ruy Mauriti (”Nem ouro, nem prata”, de 1976 ) e Martinho da Vila, que no disco “Canta canta, minha gente”, de 1974, gravou “Festa de umbanda”, uma das faixas mais tocadas do LP. Entre os artistas atuais, a cantora Rita Ribeiro é considerada uma das principais divulgadoras desse tipo de música.
— Depois do auge dos anos 1970 houve uma queda, embora os festivais nunca tivessem desaparecido por completo. Há cerca de 16 anos, o movimento teve um renascimento, motivado pelo crescimento da música gospel e, com isso, as pessoas ligadas à nossa questão cultural terem percebido a importância de fomentar ações que ajudassem a divulgar e difundir as nossas tradições — explica Marcelo Fritz, diretor geral do Prêmio Atabaque de Ouro, criado em 2005 e responsável pelo ressurgimento dos festivais de música de umbanda.
Marcelo contou que já em seu segundo ano, o prêmio que começou como regional passou a ter abrangência nacional, primeiro com a participação de concorrentes de São Paulo e depois de outros estados, como Mato Grosso, Paraná e Pará. A concorrência é entre os campeões dos concursos regionais, que se esforçam ainda mais numa disputa nacional, a ponto de contratar maquiadores e coreógrafos, para fazer bonito na festa.
Uma das lideranças das religiões de origem africana, o babalaô Ivanir dos Santos, considera esses festivais um importante instrumento de reafirmação das tradições afro-brasileiras e de combate à intolerância religiosa. Ele acha ainda que inciativas como essa ajudam a elevar a autoestima dos adeptos da umbanda.
— Num momento que que se tem tanto massacre e ataque à umbanda e ao candomblé, esse festival acaba se tornando uma atividade que serve para elevar a autoestima dos adeptos. Com isso, esses festivais têm uma função social e cultural muito grande. É um momento de confraternização e um encontro social, que serve para reverenciar as entidades. Ao mesmo tempo é uma disputa saudável, pela melhor cantiga, performance cultural e teatral. Num momento de intolerância religiosa, o evento funciona como um grande instrumento de afirmação e o Atabaque de Ouro, é culminância em nível nacional, servindo também como base para a luta contra a intolerância, porque depois dele acontece a Marcha pela Liberdade Religiosa — defende Ivanir dos Santos, segundo o qual só no Estado Rio existem pelo menos 1 milhão de umbandistas.
Seletivas a pleno vapor
As seletivas para o ano que vem estão a pleno vapor. Uma delas ocorrerá no domingo, em São Gonçalo, no Clube Espaço São Jorge, Vila Lage. Com a participação de dez concorrentes e previsão de público em torno de 3.500 pessoas, o evento organizado pela Central dos Ogans está em sua segunda edição.
— Não somos muito de ficar nos mostrando, até mesmo por sermos alvos de muita crítica e de preconceito contra as religiões de matriz africana. Com isso, a divulgação acaba ficando mais entre os próprios frequentadores dos terreiros — afima Mauro Cezar Passeri, da Central dos Ogans e um dos organizadores do 2º Festival de Pontos de Umbanda de São Gonçalo, ao justificar o pouco conhecimento do grande público para essa modalidade de concurso.
Para Mauro, que já concorrei em outros estados como São Paulo e em julho vai participar da disputa que acontecerá no Clube River, no Rio, os concursos ajudam a agregar as pessoas e ao mesmo tempo apresentar pontos novos que passarão a ser cantados nos terreiros. Segundo o organizador do festival de São Gonçalo, a cidade onde a umbanda começou há 115 anos, possui atualmente cerca de 6 mil terreiros cadastrados.
No domingo seguinte, dia 17, será a vez da quadra da Imperatriz Leopoldinense, em Ramos, receber o Festival Canto da Fé 2018, com 30 composições concorrendo aos troféus que serão distribuídos aos dez melhores, além de valer vaga no Atabaque de Ouro. No dia 8 de julho, o River Futebol Clube, na Piedade recebe o 2º Festival de Cantigas Afro-Brasileiras, com o mesmo número de concorrentes e de troféus. Em outubro, será a vez da Zona Oeste do Rio entrar na disputa, com a realização do primeiro concurso do gênero em Campo Grande.
Carlos Moraes, produtor do 2º Festival de Cantigas Afro-Brasileiras, em Piedade, conta com um público crescente. No ano passado foram 700 pessoas. Para esse ano ele projeta receber pelo menos 800. No total serão 30 músicas concorrentes, com premiação em troféus para as primeiros dez colocadas.
— Nesse momento o que mais precisamos é de união. O festival é um domingo de confraternização, onde é possível divulgar a nossa música e a nossa mensagem— afirma o também compositor que, como Carlinhos Oxaguian, participa desde 2006 do Atabaque de Ouro, tendo vencido na edição passada na categoria de melhor curimbeiro.
Bia Nascimento, uma das organizadoras do Festival Canto da Fé , que está na sua terceira edição, é também compositora e há 19 anos participa dos festivais, onde ficou conhecida como a “Princesa da voz da Umbanda”, e tendo colecionado seis prêmios Atabaque de Ouro. Para ela também, esses concursos são a oportunidade de renovação dos pontos cantados nos terreiros.
— Mas eu costumo dizer que todas as concorrentes são campeãs, pois nem sempre a que ganha é a que vai ser cantada nos terreiros — define.
Júlio Cesar Carnaval, que está organizando o primeiro festival de Campo Grande, pretende aproveitar a oportunidade para homenagear os precussores desse movimento, considerado fundamental para o combate à intolerância religiosa.